terça-feira, 9 de junho de 2015

Crise do Lulismo e a segunda morte do PT


Fabrício Rocha, Alagoinhas.
e André Maciel, Irecê.


O intervalo histórico compreendido entre os anos 1950 e final dos anos 1970 foi caracterizado por uma quase que absoluta estabilidade dos padrões de acumulação do capital. A gestão capitalista ficou sob a responsabilidade do keynesianismo e suas variantes nacionais e periféricas em consonância simbiótica com o regime de acumulação fordista. A intervenção do Estado na economia, o pacto social estabelecido entres as classes sociais, ou mais especificamente entre suas direções políticas e sindicais, associados a uma estrutura produtiva calcada na rigidez da divisão social do trabalho, produção em massa e de produtos padronizados garantiram os chamados “anos dourados” do capitalismo.
Evidentemente que a totalidade desse processo aconteceu de forma desigual e combinada. O fordismo periférico, típico de países da America Latina, como o Brasil, a Argentina e o México, foi um fenômeno tardio e devido a isso apresenta particularidades determinantes na explicação dos atuais formatos econômicos e políticos da nossa realidade. Diferentemente do fordismo implementado na Europa e nos EUA – ancorado na extração de mais-valia relativa sustentado pelo incremento tecnológico – o fordismo periférico se organizou pelo viés da extração do mais valor absoluto, uma vez que os regimes autoritários inviabilizaram as mobilizações da classe trabalhadora e, por consequência, esta não se apropriou dos ganhos de produtividade, acarretando como corolário arrochos salariais e deterioração das condições de trabalho e da qualidade de vida. A estrutura de nossas economias, a exemplo da brasileira, foi marcada por plantas produtivas obsoletas, altamente poluidoras, baixo dinamismo tecnológico, sistema fundiário baseado na concentração de terras e no latifúndio, sistema tributário beneplácito para com os setores mais ricos da sociedade, uma gestão autoritária e burocratizada do Estado e, por fim, uma dependência econômica que vem subjugando a totalidade dos países latinos americanos e que possui o endividamento público como seu elemento primordial. 
No Brasil, esse cenário produziu uma esfera política e social bastante convulsionada. A classe trabalhadora e os estratos subalternos, principalmente no período de crise do regime militar, passaram a se movimentar com mais intensidade e uma onda contestatória invadiu o país abalando o regime igual a um tsumani devastador cujas expressões políticas e sindicais mais relevantes e que se formaram no seio dos trabalhadores foram o PT e a CUT.
Produto das greves metalúrgicas do ABC paulista e da reorganização política da classe trabalhadora por todo o país, o PT nascia com um formato e programa eminentemente antirregime, popular e comportava nas fileiras mais radicais um forte discurso socialista com teor revolucionário. Neste momento específico, o PT concentrava o que existia de melhor e progressista entre os ativistas sociais e sindicais. Uma afluência de organizações e movimentos sociais se somaram para preencher o vazio de representatividade política existente e para se contrapor ao reformismo pecebista e ao sindicalismo pelego umbilicalmente associado ao regime militar e à burguesia nacional.
Após uma década de intensas mobilizações, greves e avanços no âmbito da consciência política da classe trabalhadora, a passagem dos anos 1980 para os anos 1990 materializou mudanças trágicas na organização partidária e sindical no Brasil. No plano interno houve o refluxo do movimento de massas associado à derrota da frente popular nas eleições de 1989 e no plano externo, a queda do muro de Berlim e do “socialismo” soviético, bem como a reestruturação produtiva em escala global que emergiu em concomitância à onda neoliberal.
 O neoliberalismo, aplicado no Brasil com um grau de selvageria que só merece analogia com sua implementação na vizinha Argentina, ampliou a dependência econômica do país e agravou seus problemas sociais a partir de uma receita que teve como substrato a privatização, os juros altos, a abertura comercial e o esforço colossal para o cumprimento das metas de superávit fiscal. Seus resultados mais reluzentes foram o desemprego, a desindustrialização e a ampliação da dívida pública. De fato, a década perdida para os trabalhadores (os anos 1990), dominada pelo Consenso de Wasghinton, representou uma voraz desconstrução do PT enquanto agremiação progressista. O distanciamento das lutas sociais e o mergulho inconsequente no mar tenebroso do financiamento empresarial de campanha levou o partido a uma crescente perda de organicidade e a uma capitulação vergonhosa ao pragmatismo eleitoral comum a todos os partidos burgueses.   
A consolidação do ideário neoliberal traz como consequência um esgotamento político da hegemonia burguesa representada pelos partidos de direita convencionais. O nível de insatisfação contra o regime/ governo capitaneado por FHC chega ao seu ápice no movimento de massas do FORA FHC e FMI. Nesse momento, percebe-se uma disposição concreta por parte da população em ir às ruas e repetir o mesmo protagonismo do que foram as Diretas e o Fora Collor. A legalidade burguesa precisava de um novo gestor, e não havia partido melhor para cumprir essa missão do que o PT. Nesse aspecto, cabe salientar que a adaptação do PT à instituicionalidade da ordem burguesa e o seu compromisso com os contratos internacionais e com a propriedade privada dos meios de produção coroam a primeira morte simbólica do Partido dos Trabalhadores enquanto instrumento político de transformação radical da sociedade brasileira. No entanto, esse transformismo também é marcado por um fenômeno político devastador: paralelamente percebe-se o surgimento e consolidação da figura do “Bonaparte a brasileira”, o Lulismo enquanto expressão do máximo culto da personalidade, a figura do dirigente inquestionável que está acima de tudo e todos, o elemento necessário para consolidar o pacto social entre as classes fundamental para manter o regime intacto e garantir a reprodução do capital sem quaisquer imprevistos.
Forma-se um consenso entre considerável parcela das diversas frações burguesas que vão do agronegócio às finanças em torno da defesa do PT como o grande achado do capitalismo para gerir o Estado Burguês e buscar uma saída por dentro do regime para a crise econômica e política produzida por anos de devastação neoliberal.
No início do Governo petista a partir de 2003, no bojo da financeirização, que desponta como cerne da acumulação do capital, o lulismo se configura como uma regulação do capital que contempla prioritariamente demandas da fração financeira. Para tanto, houve o estabelecimento de uma política econômica ortodoxa assentada nos juros altos e na obediência fiel ao pagamento da dívida pública. Entretanto, esse mesmo período é marcado pelo crescimento econômico mundial, pela valorização dos preços das comodities e pela significativa participação da demanda chinesa, refletindo positivamente na nossa balança de pagamentos com a entrada de vultosa soma de recursos. Tais fatores, somados a alguns elementos de política nacional, como a expansão do crédito e a reconfiguração da distribuição da renda no mundo do trabalho com a valorização constante do salário mínimo, permitiram à gestão petista beneficiar a vários senhores ao mesmo tempo, ainda que de forma desigual.
Inevitavelmente se produz um cenário de relativa estabilidade social e melhora de vários indicadores sociais, embora a metodologia para o cálculo desses números tenha sido prontamente questionada pelos seus críticos mais radicais. Essa conjuntura trouxe uma sensação de bem-estar e resultou em índices positivos de aprovação do governo do PT. Para agradar a fração do agronegócio forjou-se tanto um robusto sistema de crédito – via, sobretudo, o plano safra – como o controle do maior movimento social de luta pela reforma agrária, o MST, através da cooptação de lideranças para o aparelho estatal.
No entanto, a essência do modelo do programa econômico petista permanece tão neoliberal quanto o PSDB. Até mesmo o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) foi pensando numa lógica privatizante das PPPs (Parceria Públicas e Privadas). Praticamente todos os investimentos em infraestrutura, por parte do governo federal, foram acompanhados por leis ou medidas provisórias que entregavam à gestão privada esses empreendimentos.
A crise financeira de 2008 marca o início do esgotamento do pacto social mediado pelo PT. Apesar de que, no discurso petista, só haver espaços para os supostos feitos históricos de seus governos, percebe-se que o PT não conseguiu concretizar, ao menos nem iniciar, nenhuma mudança radical nas estruturas da nossa sociedade. O sufocante comprometimento das finanças do orçamento estatal devido ao religioso pagamento da dívida pública inviabilizou quaisquer melhorias perceptíveis nos serviços sociais como saúde e educação públicas. 
As reformas capazes de alterar a estrutura social do país não foram consideradas pelo lulismo. Na previdência houve uma contra-reforma; a reforma agrária estacionou em benefício do agrobusines; incipientes tentativas de enfrentar o histórico déficit habitacional malograram; a taxação das grandes fortunas, bandeira histórica do programa petista de outrora, não foi sequer cogitada, decepcionando aqueles que contavam com uma reforma tributária mais progressiva; o oligopólio midiático permaneceu incólume em prejuízo de um modelo democrático das comunicações. Em tal ambiente não causa nenhum espanto o fato de que o contraste entre a renda do capital e os rendimentos do trabalho só tenha aumentado.
O baixo crescimento do PIB a partir sobretudo de 2011, associado à diminuição da demanda externa pelas commodities, gerou um abalo na hegemonia lulista, expressa por meio de sucessivas greves nos serviços e obras públicas, ganhando enorme ênfase no bojo das denominadas “jornadas de junho” de 2013. A crescente insatisfação social resultou na retomada das lutas da classe trabalhadora e dos setores populares, suprimindo a capacidade do  lulismo e do PT em imobilizar os subalternos.
Em face dessa dificuldade de perpetuar a acumulação do capital, tornam-se perfeitamente compreensíveis as disputas cada vez maiores de diversos setores da burguesia em relação à viabilidade ou não do projeto lulista. Todavia, o conjunto da classe dominante somente abandonará o barco de forma integral quando um novo projeto hegemônico estiver perfeitamente delineado: por enquanto o momento é de experiências, mas ainda não sente firmeza em agrupamentos como o PMDB, que controla o parlamento e a articulação política do planalto, nem tampouco no desacreditado projeto tucano. A direita tradicional movimenta-se no sentido de aglutinar os setores burgueses descontentes e de se constituir enquanto alternativa eleitoral para uma parte da classe média mais abastada.
A segunda morte do PT se consolida pela incapacidade, diante de um cenário externo instável, de continuar gerindo o estado burguês e ao mesmo tempo ser visto como um instrumento político capaz de representar os anseios populares. O segundo mandato de Dilma será o coroamento inconteste do seu transformismo, pois este governo estará cada vez mais parecido com um governo tucano, vide o ajuste fiscal regressivo, as MP 664,665 que modificam certos direitos trabalhistas, o papel cumprido por considerável parte da base de apoio e sustentação do governo na aprovação do famigerado projeto da terceirização.
Nem o PT nem o lulismo conseguirão reverter essa crise terminal. Findaram-se todas as ilusões que sempre acompanharam esses sujeitos como representações políticas dos trabalhadores. No próximo dia 11 ocorrerá em Salvador o congresso do PT.  A despeito dos futuros êxitos eleitorais do petismo, ou até mesmo o resurgimento de Lula no cenário nacional, essa crise política encaminha-se para o seu desfecho final. Será o dia de finados para aquele partido que nasceu nas gloriosas greves dos trabalhadores e que algum momento representou a alvorada da alternativa classista em terras tupiniquins.

 

1 comentários:

Parabéns aos autores pelo artigo, pela retrospectiva e análise histórico-política do atual sistema econômico, que se encontra em declínio e da reflexão acerca das decepções de um partido que tinha um ideal socialista ao lado dos trabalhadores em seu surgimento e que, agora, anda comungado com o capital video-financeiro, juntamente com suas privatizações. Aguardamos ansiosamente, através de muita luta, por um novo modelo econômico que traga igualdade em todos os aspectos e seja norteado, sobretudo, pela ética. Abraços, camaradas!

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