|Por Renata Malett, presidente do PSTU Salvador
No
início deste mês, o prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), sancionou a lei que
define, a partir de 2016, o Dia Municipal Antiaborto. Ou seja, já no próximo ano, a segunda
sexta-feira do mês de maio será conhecida como o Dia Municipal de
Conscientização Antiaborto.
Essa
lei, aprovada na Câmara de Vereadores de Salvador, é de autoria da vereadora
Cátia Rodrigues (PROS), pertencente à bancada evangélica da Câmara e conhecida
por depoimentos e projetos de forte conteúdo de intolerância às religiões de
matriz africana.
Para
o PSTU essa medida não tem nada de progressivo. É um grande retrocesso à luta
das mulheres e às reivindicações feministas. É um duro ataque às mulheres de
nossa cidade que são vítimas das práticas do aborto inseguro e da política da
prefeitura de ACM Neto.
Um olhar sobre as
mulheres que realizam aborto
Só
conseguimos fazer uma discussão séria sobre o aborto em nossa cidade se
olharmos para as mulheres que realizam o aborto. Quem são e onde estão? Em
grande maioria, elas são as trabalhadoras, elas são as negras, são o nosso
povo. Um corte racial e de classe é necessário nesse tema.
Mesmo
que ilegal, no Brasil, uma em cada cinco mulheres já realizou aborto. Na Bahia,
quase 20 mil mulheres deram entrada em hospitais por abortamento em 2013. Destas,
40% são solteiras, 85% negras e 60% de baixa escolaridade. Segundo a SMS (2013),
o aborto é responsável por 22% das mortes maternas em Salvador, dados ainda subnotificados.
Na nossa cidade, o índice de mortalidade materna é cinco vezes maior que o
mínimo definido como aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é
de 10 óbitos por 100 mil gestantes.
Nossas
mulheres, negras e do povo, abortam porque não têm condições financeiras ou
preparação para ter um filho, porque são abandonadas grávidas por seus
companheiros, porque o marido não quer o filho, por falhas nos métodos
anticoncepcionais, por falta de acesso a esses métodos e por uma rede de saúde
pública que não funciona. Estamos falando de mulheres que abortam não com o
intuito de cometer um crime, mas por necessidade.
Estamos
falando de mulheres da periferia, que estão nos piores trabalhos, nos mais
precarizados, maioria nos setores terceirizados e que recebem menos de 2
salários por mês. Aquelas que não encontram creche pública para deixarem seus
filhos quando vão trabalhar e que ainda acumulam uma dupla jornada, tendo que
cuidar da casa, filho e marido depois da dureza do “batente”. As que esperam
meses para marcar uma ginecologista pelo SUS e que tem dificuldade no acesso
aos métodos contraceptivos na rede de saúde.
Estamos
falando daquelas que não podem pagar dois mil reais para fazer um aborto nas
clinicas clandestinas de Salvador e que recorrem a procedimentos muito
inseguros, como remédios, chás e outras práticas caseiras. Que se veem sozinhas
quando fazem o aborto. Que sofrem com as consequências físicas e emocionais do
aborto inseguro e, quando recorrem ao hospital, sofrem preconceito e são maltratadas
pela equipe de saúde.
O
aborto mata as nossas mulheres, mata as negras de nossa cidade. Sabemos disso.
O Dia Municipal Antiaborto não é uma saída para resolver essa questão. Consta de
uma medida conservadora que não traz a discussão necessária sobre a prática do
aborto, a saber: a descriminalização das mulheres e a compreensão do aborto
como questão de saúde pública e de direitos humanos.
As
mulheres negras que realizam o aborto, além de sofrerem com o próprio ato do
aborto (métodos de risco que podem ter consequências físicas, fatores
emocionais, dores), ainda são vítimas de preconceito. Por ser uma prática
ilegal, elas ainda podem ser presas. E sabemos muito bem como funciona a justiça
racista, as negras são as mais vulneráveis e com mais chances de serem presas
por fazerem aborto.
Além
de desconsiderar a realidade das trabalhadoras negras de nossa cidade e os
fatores que as levam a fazerem o aborto, o Dia Municipal Antiaborto fortalece o
preconceito e a criminalização dessas mulheres. Uma vez que o projeto prevê a
realização de atividades em escolas, postos de saúde e comunidade, o que irá
ser legitimado é a concepção moralista/conservadora que culpabiliza a mulher
por sua realidade e a trata como uma criminosa por abortar. Isso é tão perigoso
que até em casos ditos “legais” de aborto (devido a estupro, risco de vida da
mãe e criança com anencefalia), poderão ser encarados com o mesmo moralismo e
culpabilização, trazendo ainda mais retrocessos nas conquistas/interesses das
mulheres.
A
mulher que faz o aborto não é uma criminosa! Não podemos aceitar que estas
sejam humilhadas e culpabilizadas! O aborto deve ser encarado seriamente, como
uma política de saúde pública e de direitos humanos.
As políticas da
prefeitura para as mulheres: ACM neto
realmente se preocupa com as mulheres de Salvador?
ACM
Neto começou a entregar os primeiros cartões do programa Primeiros Passos
(auxílio creche). Com esse cartão, cada família irá receber R$ 50,00 por mês
para cada filho com idade até 5 anos (limite de três filhos por família). O que
seria uma política temporária para o início da construção das creches
prometidas durante a sua campanha para a prefeitura, virou permanente e única
na gestão de ACM Neto. Creche que é bom nada!
E
nada mesmo, porque ACM Neto sequer construiu 1 creche até agora. Enquanto isso, apenas 2% das nossas crianças
de até 5 anos estão em creches públicas. As mulheres de nossa cidade ainda
precisam recorrer às creches comunitárias (quando elas existem), pagar creches
particulares (que são muito caras e inacessíveis para a maioria das mulheres) ou
dar um “jeitinho”, deixando seu filho com a vizinha ou com a avó.
O
mais interessante é que, para ACM Neto, o principal obstáculo para a construção
das creches é a falta de terras para a construção. Ele só esqueceu de dizer que,
para a especulação imobiliária, existe muita área de construção, destas áreas
públicas que estão sendo loteadas pela prefeitura. Mais de 30 casarões do Centro
Histórico de Salvador foram demolidos, outros na região da Montanha serão
postos a baixo, com o objetivo de implantar o projeto “Novo Centro” que servirá
apenas para favorecer o mercado imobiliário. Não poderiam ser construídas
creches públicas nessas áreas?
Não,
essas áreas não serão para as creches. Isso porque a grande marca da gestão de
ACM Neto é a privatização da cidade. Nesse quesito ele já fez muita coisa. Privatizou
a Lapa e manteve a máfia do SETEPS no transporte público, por exemplo.
A
privatização da cidade se completa com a “faxina” racial executada pela
prefeitura. A população negra de nossa cidade está sendo expulsa dos ditos
pontos turísticos: nas demolições dos casarões do Centro Histórico, na
“restruturação” do Mercado do Peixe e da Lapa, perdendo sua fonte de renda e
nas abordagens policiais aos negros jovens que vão pra a “Barra Revitalizada”.
Até cactos em baixo de viadutos estão sendo colocados para impedir a
permanência de moradores de rua nessas regiões. As negras e os negros de nossa cidade não são
bem vind@s na Salvador do Turismo.
Essa
violência institucional é uma realidade sofrida pelas mulheres negras de
Salvador. A violência da falta de creches e escolas para as crianças, do
desemprego e dos empregos precarizados, da ausência de projeto de moradia
popular, do sucateamento dos postos de saúde, da ineficaz rede municipal de
proteção à mulher vitima de violência, da política de segurança violenta e
racista.
A
prefeitura de ACM Neto não se preocupa com as mulheres negras porque não tem
politica que realmente combata a dura realidade de nosso povo. Ao contrário,
legitima a violência machista e racista institucional.
O
Dia Municipal Antiaaborto não é uma medida de defesa das mulheres, é mais uma
violência institucional. Não visa beneficiar as mulheres, mas sim atender as
exigências da bancada evangélica da Câmara Municipal de Salvador. É com essa base
de apoio que ACM está preocupado, e não com as soteropolitanas.
O
Dia Municipal Antiaborto é expressão da opinião do moralismo fundamentalista
evangélico. Não foi à toa que a data escolhida para essa campanha antiaaborto
(segunda sexta-feira do mês de maio) seja tão próxima ao Dia das Mães: essa
moral conservadora e machista reduz a mulher ao papel de reprodutora e de ser
mãe e que condena como pecadora a mulher que realizou o aborto. É um absurdo o Estado (a prefeitura de
Salvador), que deveria ser laico, definir uma lei baseado apenas em uma opinião
da religião sobre o tema do aborto. As mulheres devem ter liberdade de escolha
sobre o seu corpo e a sua vida.
Um programa para as
Mulheres Trabalhadoras de Salvador: Descriminalização do Aborto!
As
mulheres negras de nossa cidade estão morrendo devido às práticas inseguras do
aborto e a grande culpada não é a mulher, e sim a lei que criminaliza essas
mulheres. É necessário mudar a legislação para que as pessoas que fazem aborto
não sejam encaradas como criminosas!
Se
fossemos criar uma data para debater a questão do aborto deveria ser o “Dia
Municipal Contra a Criminalização do Aborto” com o objetivo de promover uma
forte campanha de conscientização do nosso povo sobre a lei que condena as
mulheres às praticas inseguras de aborto e à morte, principalmente as negras e
pobres.
Além
de mudanças na esfera legal, precisamos de politicas públicas nas esferas da
educação, saúde, combate a violência à mulher e do emprego digno. As mulheres
precisam de um trabalho digno para que possam criar seus filhos, de creches e
escolas públicas e de qualidade para as crianças e de um programa de saúde de
atenção à mulher que a atenda de forma integral/universal. Uma educação sexual
não sexista para evitar a gravidez não desejada, anticoncepcionais gratuitos
para não abortar e um aborto legal, seguro e público para não morrer.
As
mulheres negras de nossa cidade, as maiores vítimas do aborto inseguro,
precisam de um governo comprometido com essa mudança, com a vida das mulheres e
com o direito sobre seu corpo e suas escolhas. Não precisamos desse Dia
Antiaborto e nem de uma prefeitura moralista, com politicas machistas e
racistas que institucionalizam a violência contra o nosso povo.
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